No meu primeiro contato com os Yoga Sūtras de Patañjali em 2000, de cara me identifiquei com o sūtra 42 do capítulo II (sādhana pāda, o capítulo da prática) que fala sobre contentamento, um dos 5 nyamas.
Vou contextualizá-lo usando como fonte o livro “Light on the Yoga Sūtras of Patañjali” (Luz sobre os Yoga Sūtras de Patañjali) escrito por BKS Iyengar.
Os Yoga Sūtras é uma breve obra atribuída ao mestre Patañjali que contém 196 sūtras (aforismos) sobre yoga. Por serem extremamente concisos, para compreendê-los é necessário também o estudo de seus comentários feitos por grandes sábios. Os comentários mais antigos são os escritos pelo sábio Vyasa, em sua obra Vyāsa Bhāsyā.
A primeira parte dos Yoga Sūtras, samādhi pāda, defini yoga. Segundo uma tradução livre do livro de BKS Iyengar citado anteriormente, “samādhi significa yoga e yoga significa samādhi. Esse pāda explica o significado de yoga assim como o significado de samādhi: ambos como profunda meditação e devoção suprema". É endereçado a praticantes mais avançados. Ainda segundo BKS Iyengar: “Para aspirantes dotados de perfeita saúde física, equilíbrio mental, inteligência discriminativa e uma inclinação espiritual, Patañjali fornece orientação sobre disciplinas de prática e desapego para ajuda-los a obter o zênite espiritual, a visão da alma (ātma-darśana).”
A terceira parte, vibhūti pāda, refere-se aos poderes sobrenaturais que surgem na jornada do yogue. “Nesta busca mais íntima, poderes sobrenaturais e realizações (vibhūti-s) aparecem naturalmente pro yogue que integrou seu corpo, mente e alma. Existe um perigo do yogue ser seduzido por esses poderes. Ele deve ignorá-los a fim de prosseguir o seu sādhana até kaivalya, o ponto mais alto da existência indivisível.”
Finalmente, a quarta parte, kaivalya pāda, fala sobre este ponto mais alto da existência indivisível, chamado de kaivalya. Segundo BKS Iyengar, “a princípio, essa parte é complexa e difícil de compreender, pois aparenta ser mais teórica do que prática, mas aspectos práticos estão presentes em cada sūtra.”
A palavra santoṣa aparece pela primeira vez no sūtra 32 do capítulo II como um dos constituintes de niyama (observâncias éticas individuais do aṣṭānga yoga, yoga de oito partes). Antes, porém, precisamos dar uma olhada no sūtra II.29.
II.29 yama niyama āsana prāṇāyāma pratyāhāra dhāraṇa dhyāna samādhayaḥ aṣṭau añgāni
Yama-s (restrições sobre o comportamento), niyama-s (observações éticas), āsana (postura), prāṇāyāma (controle da respiração), pratyāhāra (retirada dos sentidos), dhāraṇa (concentração), dhyāna (meditação, contemplação) e samādhayaḥ (samādhi, completa absorção) aṣṭau añgāni (são os oito aspectos do yoga).
Niyama, portanto, é o conjunto de 5 observâncias éticas individuais, que são o 2º aspecto do asṭāṇga yoga de Patañjali.
II.32 śauca santoṣa tapaḥ svādhyāya Īśvarapraṇidhānāmi niyamāh
Śauca (pureza), santoṣa (contentamento), tapa (fervor, disciplina), svādhyāya (estudo das escrituras espirituais, que leva ao conhecimento do Eu) e Īśvarapraṇidhāna (entrega a Deus) são os niyama-s.
Finalmente, chegamos ao sūtra que define santoṣa. Veremos a tradução de BKS Iyengar para o inglês do aforismo II.42 e seus comentários, onde faz uma bela associação entre todos os 5 niyama-s.
II.42 santoṣat anuttamaḥ sukhalābhaḥ
santoṣat do contentamento
anuttamaḥ sem igual, supremo, excelente
sukha prazer, felicidade
lābhaḥ ganhar
Do contentamento e benevolência da consciência vem a suprema felicidade.
Através da pureza do corpo, o contentamento é atingido. Juntos, eles ateiam a chama de tapa-s, propulsionando o sādhaka em direção ao fogo do conhecimento. Essa transformação que indica que o sādhaka está no caminho correto de concentração, possibilita-o a olhar internamente através do estudo do Eu (svādhyāya) e depois em direção a Piedade (da palavra em inglês Godliness, de uso antigo do Cristianismo que significa: obedecendo Deus e levando uma boa vida).
Concluindo, vejo santoṣa como a observação constante do contentamento, que não deixa de ser um aspecto de nossa pratica regular e diligente (abhyāsa) e a aceitação de cada momento de nossas vidas, sejam eles prazerosos (sukha) ou pesarosos (duḥkha) com um certo distanciamento e desapego (vairāgya). Essa pratica constante de santoṣa em si, que não significa de modo algum apatia em relação a vida, e sim uma compreensão do que realmente somos, e o resultado dela é felicidade suprema. Assim, ser feliz é praticar constantemente o contentamento em relação a todas as manifestações da vida, praticar o contentamento em relação a cada mínimo gesto, a cada pequeno acontecimento, a cada inspiração e a cada exalação, por mais breve e “normal” que ela seja.
Leia também
Sobre abhyāsa:
• Post de 30 de abril de 2014, Sobre abhyāsa e vairāgya.
Mais antigos, sobre contentamento:
• Post de 6 de setembro de 2009, Sobre felicidade, cachorros e crianças.
• Post de 16 de junho de 2013, Sobre BKS Iyengar e contentamento.
Os sutra-s estudados em devanāgari (na ordem em que aparecem no post)
यमनियमासनप्राणायामप्रत्याहारधारणाध्यानसमाधयोऽष्टाङ्गानि ।२९।
शौचसंतोषतपःस्वाध्यायेश्वरप्रणिधानानि नियमाः ।३२।
संतोषादनुत्तमः सुखलाभः ।४२।
Capa da edição que eu tenho do Light on Yoga Sutras of Patañjali.
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