Um dia, ela acordou e sentiu-se diferente. O despertador nem tinha tocado, faltava muito pra hora de acordar. Não teve pesadelo nem sonho, não sentiu vontade de fazer xixi, não ouviu som algum. Apenas acordou mais cedo. Apenas sentiu-se diferente.
Durante o café da manhã com o namorado não abriu a boca pra pronunciar palavra, apenas comeu pão e tomou um chá. Nem o jornal abriu. Não acariciou o gato malhado do vizinho, não disse bom dia pro porteiro, não pegou o ônibus pra faculdade. No meio do caminho a pé, resolveu dar meia volta e matar aula.
Parou na praça. Primeiro andou um pouco próxima às babás, bebês, e passeadores de cachorros. Depois sentou em um banco e ficou ali sentindo-se diferente.
No seu silêncio, ouviu alguns latidos, passos se aproximando e se afastando, fragmentos de conversas, chorinho de criança. Sentiu saudade de coisas que nunca teve: o cachorro carente louco pra passear; o bebê carequinha e fofinho; a casa no sítio no interior...
Ficou ali lembrando de tudo isso: das vacas pastando e galinhas ciscando. Lembrou das enormes mangueiras pintadas de manga e das jabuticabeiras “enverrugadas”. Sentiu a água fresquinha da lagoa cheia de peixes e se assustou com os gansos de cabeça rente ao chão prontos pra atacar. O touro Nelore com aquela “corcova”, o cupim, apareceu em passos lentos, despreocupado atrás de suas vacas.
Cupim. Lembrou da churrascaria na esquina do prédio onde mora e das gentes comendo cupins, picanhas, maminhas... Sentiu uma tristeza enorme. A saudade manchou-se de sangue. Sangue das vacas, porcos e aves nos matadouros, sangue nas mãos e nos olhos dos funcionários mal tratados na hora do abate.
Pensou que no dia seguinte tudo voltaria ao normal: acordaria com o despertador às 6, conversaria com o namorado, brincaria com o gato gorducho, daria bom dia, pegaria o ônibus, iria pra aula... Só não comeria carne nunca mais!
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