Em
um pouco mais de 1 hora da palestra “5 pearls from the sutras” (5 pérolas dos
aforismos de Patañjali), Prashant Iyengar fala com maestria e beleza sobre
cinco pontos fundamentais para o estudo dos yoga sutras. Felizmente a palestra
virou CD e assim consegui ouvir com calma, transcrever e traduzir os primeiros 20
minutos em que ele fala sobre a 1ª pérola: citta. Uma verdadeira jóia!
Prashant
Iyengar fala:
Patañjali
tem um profundo trabalho no campo do corpo, mente, fala e de toda a encarnação
humana. Hoje, quando yoga se tornou tão popular, existem basicamente duas
perspectivas pelas quais a ciência do yoga tem sido considerada. Uma delas é
para o bem estar humano, onde o conceito é muito limitado. A pessoa quer ficar bem
condicionada fisicamente, mentalmente, psicologicamente, intelectualmente,
emocionalmente, e quer levar bem os negócios mundanos da vida. Assim, o yoga
chega ao homem comum, desde às pessoas em prisões, àquelas em universidades, de
todas as profissões e vocações. Yoga tem se tornado um bem de consumo em todos
os lugares. Por outro lado, a
outra perspectiva é que yoga é para a realização de deus e que muito poucos
podem abraçar o assunto e chegar a seu objetivo.
Mas existe muito
entre essas duas perspectivas. Você e eu, pessoas comuns, que levam a vida
mundana, se envolvendo em profissões, trabalhos, negócios... De nós aos que
realizaram deus existe dois pólos muito distantes. Existe alguma coisa entre
eles, no meio, e nós como estudantes de yoga devemos investigar o assunto
profundamente.
É okay
quando o assunto é popularizado e levado pra os cantos remotos do mundo, nós
temos que explicar que yoga é bom para os negócios da vida, pra saúde física,
intelectual, mental, emocional etc, etc, mas nós, como estudantes de yoga,
devemos investigar e tentar entender o que existe entre os dois pólos.
O texto de
Patañjali é muito conciso, é como um pequeno jarro contendo um oceano. Por isso
nós, estudantes de yoga, devemos investigar, entender e explicar a nós mesmos
com o propósito de conhecer o assunto.
O texto de
yoga começa com a palavra citta. Yogaḥ cittavṛtti nirodhaḥ e a palavra citta tem sido
traduzida muito frouxamente como mente, ou talvez coisas da mente, ou talvez
consciência. Bem, a definição apresentada no Yoga Sūtra poderia ter sido: yogaḥ manovṛtti nirodhaḥ. Qual diferença teria feito pra
nós? Nós teríamos entendido da mesma maneira. Teríamos abraçado o assunto da
mesma forma e não teria feito a menor diferença, porque para nós mente (manas) e citta são uma e a mesma coisa. Nós precisamos saber o que citta é. Estudantes de yoga precisam
saber o que citta é. Não existe
palavra em inglês (língua usada por Prashant na palestra) para citta, muitas vezes tem sido usada como
consciência, coisas da mente etc, etc. Não são termos precisos e não poderá
haver termo preciso. Citta deve ser citta. E o que é citta? Qual é a diferença entre mente e citta? Os filósofos teóricos vão abrir o conceito, dizendo que citta significa manas + buddhi + ahaṁkāra e nós vamos apenas saber de nossas
cabeças... Ok, ok, ok... O que é isso? O que realmente citta é?
Vou tentar
explicar a vocês com um breve exemplo. O que é mano-vṛtti, ahaṁkāra-vṛtti e o que é buddhi-vṛtti e quando
eles se tornam citta-vṛtti.
Consideremos
por exemplo uma mãe que está esperando por sua criança chegar em casa no final
do dia. A criança saiu pra brincar com alguns amigos, é esperada por volta das
7, 7:30 e são 8:30 e a criança ainda não voltou. 9:00, 9:30 e a criança ainda não
voltou. Naturalmente a mãe vai começar a se preocupar. Logicamente esqueçam os
celulares, porque atualmente as crianças também carregam celulares, mesmo assim
não são um meio eficaz de comunicação porque na maioria do tempo os celulares
estão fora de área. De qualquer forma, há um problema de comunicação e a mãe
está preocupada. Inicialmente sua mente vai estar pensando nas várias
probabilidades, “isso pode ter acontecido, isso deve ter acontecido... isso
deve ser a razão, isso pode ser a razão” etc. E a mente está incansável,
incapaz de decidir o que deve ter acontecido, está inquieta em milhões de
possibilidades e a mãe está em absoluta confusão.
A mente,
então, é incapaz de decidir se isso ou aquilo deve ter acontecido e causa
constante oscilação entre possibilidades e a mente é caótica. Então, isso é a
mente. Em dado momento, um pensamento aparece e a mãe diz “não, isso não pode
ter acontecido à minha criança, porque ela é inteligente, então ela não poderia
estar fazendo nada disso.” No meio de tantas probabilidades, algumas, por um
momento, terão ido embora. “A criança é inteligente, a criança é responsável,
então essas coisas não devem ter acontecido”. O intelecto vem e diz que aquelas
coisas não devem ter acontecido. Então a inteligência vem e faz um tipo de
manipulação, uma interferência e tenta acertar a mente que está inquieta,
indecisa.
Em um outro
momento ela pensa: “minha criança não faria uma coisa dessas, eu instrui minha
criança, eu avisei à ela, afinal de contas é minha criança e por isso não
poderia fazer isso ou aquilo.” Isso é ahaṁkāra-vṛtti. Ou em outros momentos, a mãe pensaria: “oh,
eu deveria ter ensinado minha criança, eu deveria ter falado sobre essas
possibilidades, eu fui descuidada, eu deveria ter feito isso ou aquilo, eu não
fiz. Ou tem o Eu expandido ou contraído. “Oh cometi um erro, eu deveria ter
instruído ela que isso é possível, eu deveria ter dito pra que tomasse cuidado,
e eu falhei.” Então isso é Eu-vṛtti, ahaṁkāra-vṛtti.
Novamente a
mãe vai ficar oscilando entre mano-vṛtti, buddhi-vṛtti, ahaṁkāra-vṛtti.
Novamente ahaṁkāra aparece
e vai embora e novamente ela começa a pensar nas possibilidades, “isso é
possível, isso também é possível, nesse mundo tudo é possível”. Novamente, a
mente sai por um momento e o intelecto aparece. E isso continua e ela está
realmente alternando entre as modificações da mente, inteligência e ego.
Isso
continua até 10:00, 10:30, 11:00, 11:30 e a criança ainda não voltou. Então
chega-se a uma situação onde não há mais oscilações. Agora, a mãe é, desde a
ponta dos dedos dos pés até o extremo fim do cabelo, completamente socada em
preocupação. Preocupação, preocupação. “Alguma coisa aconteceu com certeza, a
criança não voltou!” Agora ela não pode sentar, nem se levantar e ela colapsa.
Mais cedo, ela estaria movendo-se da varanda até a porta dos fundos, do portão
à porta dos fundos, ela estaria sem descanso. Em um momento, ela poderia
sentar, “quais são as probabilidades, deixe-me sentar e pensar”. Agora ela não
pode sentar, ela também não pode ficar de pé, ela colapsa. Ela está
completamente imersa em preocupação, preocupação, preocupação. Ela está
absolutamente em pânico. Ela está totalmente devastada. Isso é citta-vṛtti de ansiedade. Vocês seguem?
Existe mano-vṛtti de ansiedade, buddhi-vṛtti de ansiedade, ahaṁkāra-vṛtti de
ansiedade, mas isso é citta-vṛtti de
ansiedade. Tudo está socado em preocupação, não existe compartimentos, nenhuma
divisão que isso é mente, isso é intelecto, isso é ego, tudo está submergido em
preocupação, em ansiedade. E isso é citta-vṛtti. Demorou
quase 5 horas para que preocupação-mano-vṛtti, se
tornasse preocupação-citta-vṛtti.
Ansiedade-vṛtti, mano-vṛtti, modificação mental de ansiedade,
para modificação de citta de
ansiedade. E levou um bom tempo, ela ficou inquieta por 4, 5 horas, ela ficou
agonizando. E agora, isso é citta-vṛtti.
Não é
correto dizer que citta-vṛtti é
modificação da mente, reformulação mental, reformulação intelectual ou reformulação
do Eu. A reformulação tem que persistir,
penetrar de tal forma até citta, que
é chamada frouxamente de consciência, mas não é realmente consciência, é citta, e isso é citta-vṛtti. Agora, para chegar a citta-vṛtti vamos começar com mano-vṛtti, ahaṁkāra-vṛtti, buddhi-vṛtti, suas
alternações, suas oscilações, mas se persistirmos com esse vṛtti então será citta-vṛtti. Se a
criança tivesse chegado às 9:30 a mãe nem teria tido citta-vṛtti. Citta-vṛtti de
preocupação não teria aparecido às 9:00, 9:30. A criança teria chegado enquanto
mano-vṛtti, buddhi-vṛtti e ahaṁkāra-vṛtti estariam brincando com a mãe. Mas é apenas às
11:00, 11:30, meia noite, a criança não chegou e aí tem apenas uma
possibilidade que algo deve ter acontecido e a mãe está completamente
colapsada. É preciso um longo tempo para que citta-vṛtti aconteça. E Patañjali fala disso, ele não fala
de mente periférica.
Vocês estão
todos me ouvindo, e isso é a mente periférica de vocês. Você pode estar muito
envolvido, pode estar ouvindo com intenção. Com esperança sou muito
influenciador pra você, e assumindo isso, digo que mesmo assim não será citta-vṛtti, leva muito tempo para alguma coisa
se tornar citta-vṛtti.
Nós nunca
nos preocupamos com o que citta-vṛtti é. Em
qualquer uma de nossas praticas, pode ser pratica de āsana, śavāsana, prāṇāyāma ou alguma meditação, a mente é
quieta, serena? Sim, esse é o efeito do yoga, a mente é nobre, a mente é serena,
e dizem que é a mente cósmica. Sim é a mente cósmica, não é citta cósmico. Porque o efeito de Viparīta
Karaṇi, ou prāṇāyāma ou
meditação, jāpa ou dhyāna, não perdura mais de 5, 10, 20
minutos, meia hora, uma hora.
Nesse
exemplo se você entender: a mente calma e controlada é muito rara e não
influencia tanto, mas ansiedade pode acontecer com qualquer homem comum e
coisas assim podem ir para citta
rapidamente. Quanto tempo você pode ficar naquele estado de calma e benevolência
de śavāsana, prāṇāyāma, meditação? Depois de 5, 10 minutos, assim que
a ressaca passar você volta para os negócios da vida, sua xícara de chá, café
da manhã, jornal, manchetes, notícias internacionais.
Viparīta karaṇi traz um bom estado mental, okay aceito isso, prāṇāyāma também, okay aceito isso, meditação também
traz, okay aceito isso, mas esses estados persistem como a ansiedade e angustia
da mãe? 3 horas, 4 horas, 5 horas e ela está preocupada, preocupada, preocupada
e só então ela tem citta-vṛtti. Se você
quer a realização de citta-vṛtti, deve
ficar nesse estado por 4, 5, 6 horas. Nós apenas ficamos na periferia, como nas
cirurgias cosméticas. Atualmente existem cirurgias cosméticas para a aparência
física. Existem tratamentos cosméticos para a mente, no chamado yoga
espiritual, o chamado yoga do mundo, os chamados mestres de yoga te dão lições
de seja lá o que for, trabalhando no plano da mente periférica, da inteligência
periférica e do ego periférico. Não há dúvida que o plano periférico é cultivado,
mas nós não estamos dando o tempo necessário para que isso aconteça no plano de
citta. Não temos tempo, basicamente
não temos paciência.
Temos que
entender o que esse citta-vṛtti é. Raiva-citta-vṛtti, todos podemos ficar bravos mais facilmente
do que ficar calmos e benevolentes, certo? É mais fácil ficar bravo do que
ficar calmo, mas levar a raiva para citta-vṛtti é um processo
muito longo, uma jornada muito longa. Somos impacientes e além da impaciência,
nós não conseguimos manter a raiva por tanto tempo, se pudéssemos, explodiríamos
e morreríamos. Podemos manter a raiva por um minuto, dois ou três, 10 minutos.
Por quanto tempo conseguimos ficar queimando? Se queimássemos por tanto tempo,
queimaríamos a nós mesmos. Tampouco raiva-citta-vṛtti que, sem
dúvida nenhuma, é mais fácil que nirodhaḥ-citta-vṛtti, conseguimos alcançar, porque não conseguimos
persistir em raiva, não podemos suportar essa temperatura por tanto tempo. Porque
nunca nos importamos com a temperatura dada aos outros. Suponhamos que eu fique
bravo com um de vocês. Eu não vou ligar para você queimando, se eu não aguentar
a raiva, vou me acalmar, me esfriar. Vocês me acompanham? Eu não vou ligar para
a temperatura do outro, no momento em que não puder agüentar mais a raiva, eu
me esfrio.
Às vezes pense no que é citta-vṛtti. Não perca o entendimento de modificação mental, você sente-se calmo,
relaxado, eletrizado, a preguiça é superada e você pensa que isso é citta-vṛtti, mas isso não é citta-vṛtti. Citta-vṛtti exige bastante persistência. Por isso Patañjali diz sthira sukham āsanam. Sthira, persistência, é a palavra chave.
À menos que você persista não se tornará citta-vṛtti.
Precisamos
pensar com cuidado sobre esse termo, esse termo “raiz”, termo básico: citta. E
nós não temos feito muito isso.
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No último dia de aula em Puna, em Junho
passado, fui me despedir do Prashantji e perguntei se poderia transcrever e
traduzir alguns trechos de suas aulas e palestras. Obtive um sim como resposta,
o que me deixou muito feliz, porque queria muito compartilhar um pouco dos
ensinamentos, e talvez sensibilizar vocês da mesma maneira que me senti tocada pelas
palavras, exemplos e práticas de Prashant Iyengar.
Obs. 1: Peço que perdoem e me avisem dos
possíveis erros na tradução e/ou dos termos em sânscrito para que eu os
corrija. Também precisei adaptar alguns trechos, muito poucos, para a edição
escrita, por isso não publico a palestra na integra.
Obs. 2: Se você se
interessou pelos áudios originais, no RIYMI são vendidos CDs das palestras e
aulas de B.K.S. Iyengar, Geeta e Prashant Iyengar. www.bksiyengar.com
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Sábio Patañjali: imagem da internet |